“Quem não quer ver malucos
Deve quebrar espelhos”.
Voltaire
“A Dama do Espelho”
"Estava frio naquele início de noite, e uma chuva torrencial como a muito não era vista caia violentamente. O restaurante do pequeno hotel já iniciara o jantar, quando um novo hóspede adentrou ruidosamente a recepção. O homem de pouco mais de cinqüenta anos de cabelos ralos e totalmente grisalhos, de guarda-chuva nas mãos, tirava sua casaca preta. Enquanto se refazia do frio da noite, registrava-se e como estava apenas com uma pasta de documentos de couro, com sua chave nas mãos seguiu para o restaurante para o jantar. Logo após satisfeito, mas cansado do dia que tinha tido, subiu calmamente estreito jogo de escadas que o levavam ao seu quarto, perdeu alguns momentos procurando o “217” conforme estava identificada sua chave, o corredor também era estreito de madeira pouco iluminado de um verniz escuro dificultava a leitura dos números semi apagados pintados nas portas.
O hotel não era dos melhores, mas devido o mau tempo e como a noite já tivesse iniciado decidiu por bem pousar aquela noite ali mesmo.
Pensava na somatória de eventos inesperados que o levaram até ali... Chegou àquela cidade pela manhã para resolver pendências de propriedade e lei, e como a cidade lhe trazia amargas recordações de um passado que a muito tentava esquecer; Apressava-se em resolver tudo e voltar para a capital.
Embora soubesse que não podia esquecer os fatos do passado, pois estavam tatuados em sua alma. E até geraram uma vida. Um filho.
Pensava na sua condição na data do acontecido, e via hoje aonde chegara, o que o fazia sentir menos culpa é que sempre enviava via depósito no banco central, ou através de um procurador de confiança os acertos financeiros para que nada faltassem a aqueles que ele deixou para trás no tempo.
No final do dia tendo dado por definido suas questões, encaminhou-se para a estação para providenciar a compra da passagem no expresso para o retorno, mas devido a um acidente conseguinte do mau tempo, as viagens seriam adiadas para o outro dia pela manhã. E por este motivo todos os hotéis do lugar estavam lotados de viajantes incautos que pegos de surpresa pousariam na cidade também. O único lugar com vagas foi aquele hotelzinho de esquina com um “Mollin Rouge” na sua esquerda, e com o cemitério das almas pela direita – talvez fosse este o motivo da vaga que restava – O fato é que restava apenas aquele quarto o Duzentos e Dezessete, como se tivesse de ser ali – Sorriu sozinho da bobagem de pensamento que lhe passou pela cabeça.
Abrindo a porta de seu quarto perdeu alguns instantes analisando o lugar... Um quarto pequeno de paredes forradas com papel, possuía duas pequenas luminárias nas suas extremidades, as velas já estavam acessas – Provavelmente enquanto jantava adiantavam-se no preparo de seu leito – Uma cama bastante sólida devo dizer de um colchão razoável de molas. Um criado mudo com um pequeno jarro de água – De bom gosto até, nada mal pensava ele – Mas o que chamou a atenção era que perto da janela se encontrava um majestoso espelho ovulado, grande, emoldurado de madeira de jacarandá com um pedestal também de madeira que tornava possível a sua utilização. Seguiu rapidamente para a janela, pois, a mesma estava semi-aberta e os gotejos da tempestade teimavam em molhar o piso próximo a ela, fechando-a notou que a vista era de vale gramado com construções de pedra que... Limpado os olhos pode ver que se tratava do velho cemitério das almas, essa descoberta o arrepiou.
– Por isso só restava este quarto! Pensou alto enquanto fechava a pequena janela.
Na frente do espelho uma poltrona confortável com uma mesinha e uma abajur – para leitura provavelmente – Trancou a porta e jogando de lado a pasta, tratou de se recostar um pouco na cama.
Ficou assim por alguns instantes, mas quando fechava os olhos as imagens de “antes” lhe voltavam, e conflitavam com as imagens do “depois”. Durante muito tempo tentou inutilmente dormir, mas não conseguiu.
Decidiu então levantar-se e ler alguma coisa; Sentando na poltrona, na procura por distração inspecionava a gaveta da mesinha do abajur, estava vazia, a não ser por um envelope lacrado por cera num brasão antigo por ele desconhecido. E o mais estranho, no remetente estava escrito seu nome!
Ao abrí-lo revelou-se uma letra muito bem feita nos seus detalhes, mas desconhecida da sua lembrança. E já na leitura da primeira linha arrepiou-se por inteiro, afastando o sono que a pouco lhe acompanhava... Contínua no livro 13 "Contos".