Com
os olhos fechados ele seguia um roteiro pré-definido em sua mente. Após meses
de estudo e ensaio finalmente poderia executar aquela apresentação de que tanto
ansiava. Falava com a certeza da repetição, com a certeza do texto bem
decorado. E com a mão direita erguida aos céus segurando uma bíblia entoava o
sermão por ele escrito e por seus superiores anteriormente aprovado. Notou que
entre os transeuntes que ali passavam indiferentes a sua apresentação, algumas
poucas pessoas paravam e se sentavam nos bancos ou na grama do jardim daquela
praça municipal e lhe cediam a atenção que pedia. Os olhos semiabertos
constataram esta evolução, pois estava ali falando as moscas desde as oito
horas da manhã, recitando, louvando, e chamando as pessoas que passavam para
ouvirem ‘a palavra do senhor’ que ele
apresentava. Escolhera a pequena elevação de concreto onde se encontrava o
busto de latão de um grande filosofo Brasileiro, e onde se lia numa placa os
dizeres: “Acreditar é mais fácil do que
pensar. Por isso existem mais crentes do que pensadores”. Sorriu levemente
com escárnio da ironia deste encontro, e enquanto cobria o busto e escondia a
blasfêmia daquele pensamento, ouviu uma voz que lhe repreendia:
- O que esta fazendo é crime
sabia? Falou um jovem tatuado enquanto coçava o seu
cavanhaque desgrenhado analisando a cena.
-
Fora rapaz! Volte à escuridão de seu
mundo. Respondeu o homem de fé ajeitando o manto de sua igreja sobre o
busto de metal. O rapaz tirou uma foto com o celular e foi embora indignado.
Nada atrapalharia sua pregação! Pensou sorrindo para uma igreja católica que a
poucos metros dele se apresentava.
Era uma manhã quente de quarta-feira, vestia
um terno barato de cor preta que o fazia transpirar, na gola da camisa branca
sem gravata fechada até o último botão, se formava manchas de umidade do suor. Às
vezes sentia o ar pesado e a uma dificuldade em respirar, e com o dedo
indicador mais de uma vez, tentou afrouxar a gola da camisa deixando a garganta
livre para respirar. Neste momento fez uma pausa, colocou a bíblia que
carregava sobre uma valise de couro negro que estava aos seus pés, e comprou
uma garrafinha de água de um ambulante que sentado também prestava atenção em
suas palavras. Tirou do bolso uma moeda para pagar pela bebida, mas o ambulante
não quis, ele agradeceu com um: -
Obrigado irmão! Enquanto bebia olhava satisfeito ao redor, seu público
aumentava consideravelmente, os pastores estariam ali logo, logo, e poderiam
ver como ele estava se saindo bem em seu último teste para líder pastoral. Quase
não se continha de satisfação, pois agora se formava uma pequena multidão ao
seu redor. Sentia-se iluminado! Pois dezenas de olhos estranhos buscavam em
suas palavras orientação e consolo para os desafios da dura vida.
De
repente deixou a garrafinha de água cair, assustado, quando entre aqueles olhos
desconhecidos notou que sua esposa e filha se mantinham compassivas em pé à
distância, com olhares tristes direcionados para ele. Aquilo não era possível!
Pois as duas estavam em casa trancadas no quarto com suas gargantas cortadas!
Jogadas no chão em meio a uma enorme poça de sangue coagulado. Tinha esta visão
em mente, pois ficara as observando durante toda a madrugada, sentado num
pequeno banco ao lado de seus corpos frios. Já estava de terno e cochilava com
a cabeça arqueada para trás, quando o despertador lhe avisou que chegara a hora
de seu compromisso e saiu de casa, vindo direto para a praça.
Estava
terrivelmente assustado com aquela visão, e mais de uma vez passou as mãos
geladas de terror nos olhos semiabertos pela força do sol do meio dia que se
aproximava. Esfregou uma, duas vezes, fazendo com que o suor quente do dia de
sol se misturasse com o suor gelado da noite do assassinato; Mas como as
aparições insistissem em ainda permanecer ali estáticas com olhares tristes,
desistiu de afasta-las e abaixou-se para pegar sua bíblia, mas ela sumiu! Não
estava em cima de sua valise, e nem no chão! As pessoas ao seu redor se
aproximavam ainda mais dele, ao seu redor se formava um circulo de quase uma
centena de pessoas estranhas que lhe cobravam com os olhos sedentos de suas
palavras acalentadoras, elas não falavam, não com voz, não com palavras que
poderiam ser escutadas por pessoas comuns. Mas ele ouvia claramente o clamor de
seu pedido:
- Fale mais! Mais! Mais!
Os olhos de todos se arregalavam e de suas bocas inertes nenhum som saia, mas
em sua mente ainda as escutava, o clamor se fazia cada vez mais alto.
- Mais, mais! Queremos
mais!
- Eu não posso! Sem minha
bíblia eu não posso... Ajudem-me, onde esta minha bíblia alguém a viu? A
pergunta se perdia no vazio daquela turba de ignorantes que o cercava cada vez
mais perto. No desespero, lembrou-se da valise a abrindo descontroladamente.
Nem olhava em seu interior, começava a se preocupar com sua segurança. Agora mais
de uma centena de pessoas desconhecidas o cercava, estavam a poucos metros de
distancia, e eram tantos que não conseguia ver mais nada ao seu redor. Em suas
faces vazias de emoção, olhos inexpressivos sedentos das palavras, a fome de
sua fé os consumia e naquele pastor jogavam o peso de seus anseios e esperança.
Quando
sua mão tocou em algo, podia sentir a bíblia com seus dedos. Mas ao retira-la
notou a manga de seu terno sujo em um liquido quente, mãos e a própria bíblia
gotejavam como se imersas em sangue! Aterrorizado percebeu que as pessoas
estavam perto demais e ele não conseguia gritar, eles o tocavam como se
tentassem lhe arrancar um pedaço, e de suas bocas tortas se formava um sorriso maligno...
CONTÍNUA no livro: "13 Contos - Da Loucura e dos Sonhos - Sidney Leal
CONTÍNUA no livro: "13 Contos - Da Loucura e dos Sonhos - Sidney Leal